Pesquisador destaca falta de estrutura no Amazonas para enfrentamento da pandemia
Com o intuito de colaborar com a análise de dados e reflexões científicas sobre a pandemia de coronavírus no Amazonas, os pesquisadores do Atlas ODS criaram um painel interativo para acompanhar os boletins emitidos pelas autoridades de saúde pública. Disponível no link http://bit.ly/odsamazonas o painel é público e tem acesso difundido por meio de redes sociais todos os dias, logo após a atualização.
Para apresentação dos mapas e previsões, o projeto lança nesta quinta (30) o primeiro Boletim Especial COVID-19. O convidado desta primeira edição é o pesquisador Jesem Orellana da Fundação Oswaldo Cruz. Leia na íntegra a entrevista:
(1) Com os dados oficiais e que são apresentados pelo Atlas ODS é possível avaliar a dinâmica da pandemia no Amazonas em termos epidemiológicos e da resposta do sistema de saúde pública? (Sim ou não, porque, quais as limitações, mesmo assim o que é possível afirmar e prever?).
Jesem: Sim. Mas, não da epidemia como um todo no estado do AM, pois há diferenças abissais nas características de cada uma das subpopulações, incluindo a estrutura e recursos humanos ligados a rede assistencial pré-epidemia, duramente castigada pela emenda constitucional do Teto dos Gastos Públicos de 2016; o engajamento comunitário e da classe política; bem como a efetividade na resposta à epidemia dada por gestores e trabalhadores de saúde no nível local. Por exemplo, no período em análise, não havia um só leito de UTI ou centros para o diagnóstico de COVID-19, fora da capital Manaus. As estruturas de vigilância sanitária e/ou epidemiológica ou de oferta de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), cruciais para o enfrentamento dos diferentes padrões epidêmicos em cada um dos 61 municípios do AM, em especial das subpopulações de acesso mais remoto, como as comunidades ribeirinhas e indígenas, já estavam sucateadas há anos, ao ponto de serem operacionalizadas por um ou dois profissionais de saúde, nos munícipios mais deficitários. Portanto, suposições sobre a dinâmica da epidemia, na escala estadual, tendem a ser pouco precisas e extremamente dependentes de um conjunto de dados e informações desconhecidas nos mais diferentes cenários que compõe essa complexa realidade. Manaus, única cidade do AM, com estrutura de serviços de saúde capaz de interconectar, quase que em tempo real, agentes da vigilância epidemiológica/sanitária, com a rede hospitalar de média e alta complexidade, rede diagnóstica-laboratorial, agentes de registro civil e de outras autarquias da administração pública como serviços de saneamento ou de assistência social, por exemplo, oferece importantes pistas sobre a ampla disseminação da COVID-19 na capital, pobremente retratada em suas estatísticas oficiais. Pobremente porque quando pensamos em dados de morbidade ou adoecimento, devemos lembrar que os resultados disponíveis sobre os exames com diagnóstico confirmado para COVID-19, em geral, representam um pequeno subconjunto de indivíduos efetivamente infectados, com ou sem sintomas (há vários motivos). Significa que a subnotificação é muito provavelmente enorme, pois só estamos testando pacientes com quadros de COVID-19 considerados mais graves na rede pública ou pacientes de maior poder aquisitivo na rede privada, por exemplo. Além disso, os resultados diários que temos para casos confirmados de COVID-19 representam, muito provavelmente, o dia do seu lançamento no sistema e não necessariamente o dia em que a amostra foi coletada e, menos ainda, a data de início dos primeiros sintomas ou de exposição a possível fonte de infecção. Portanto, quando pensamos em dados de morbidade ou adoecimento, na prática, o que temos são dados que remetem a data da divulgação dos resultados, o que limita qualquer estratégia efetiva de acompanhamento da dinâmica da doença e do seu espalhamento, bem como da implementação de ações ao seu oportuno enfrentamento. É como se estivéssemos seguindo rastros imprecisos da destruição e não os momentos e contextos em que ela ocorreu. Este é um ponto chave para entender a dinâmica de uma doença infecciosa com alto potencial de dispersão e com crescimento claramente exponencial. Se tivéssemos a mesma estrutura laboratorial de hoje, no dia 15 de março de 2020, nossas estatísticas seriam as mesmas? Se tivéssemos rastreamento efetivo e oportuno de casos em Manaus, o primeiro caso de COVID-19 teria sido diagnosticado no dia 13 de março ou dias/semanas atrás?
(2) Esses dados de fato indicam que o Amazonas tem uma situação mais crítica do que outros estados e regiões do país ou mesmo outros países?
Jesem: Sim. Mesmo com todas as limitações dos dados, o colapso da rede hospitalar e da estrutura funerária de Manaus, não deixam dúvidas de que a situação é caótica, em especial em Manaus, onde já morreram quase 300 vítimas de COVID-19 (há estudos em outras cidades do Brasil sugerindo que o número de mortes seria três vezes maior, por exemplo). Enquanto que em países como Colômbia, Chile e Argentina, com populações muito maiores do que a de Manaus, o total de mortes é equivalente ou inferior. Em comparação a países como Cuba e Bolívia, com menos de 60 mortes por COVID-19, a diferença é ainda mais gritante, ratificando a gravidade do problema localmente.
(3) A letalidade da COVID-19 é de fato muito superior a de outras morbidades (outras SARS, outras causas), o quanto?
Jesem: Aparentemente sim. Mas, pouco se sabe sobre este importante nuance, pois estimativas de letalidade no nível populacional são praticamente inviáveis, seja lá onde for. Talvez seja mais razoável pensarmos em letalidade para casos hospitalizados em cenários com e sem colapso da rede assistencial, o que só será possível mais adiante. Mas, sem dúvida, o dado de mortalidade é menos problemático, quando comparado ao de morbidade ou adoecimento.
(4) Sobre os chamados grupos de risco e as vulnerabilidades socioeconômicas de fato há indícios de que são os mais afetados pela pandemia, como essas desigualdades devem ser enfrentadas?
Jesem: Os mais vulneráveis para COVID-19 são velhos conhecidos em epidemiologia de doenças infecciosas respiratórias, como idosos, pessoas com comorbidades, incluindo doenças como diabetes, hipertensão e doenças que afetam o sistema de defesa (imunológico) ou ainda grupos que vivem em situação de pobreza ou pobreza extrema, como indígenas, pessoas em situação de rua, imigrantes ou mesmo desempregados ou famílias com renda inferior a dois mil reais. Este talvez seja um importante aspecto no Amazonas, estado marcado por forte desigualdade socioeconômica, a qual pode estar sendo determinante, inclusive, na capacidade de prevenção, de acesso a serviços de saúde e de recuperação desses grupos, em caso de adoecimento moderado ou grave por COVID-19, por exemplo. O auxílio emergencial, a duras penas fornecido pelo governo federal, por certo, está auxiliando a mitigar os efeitos da epidemia em curto prazo, assim como outras estratégias de alcance mais imediato. Mas, no médio e longo prazo, a solução passa por políticas contundentes e efetivas de inclusão social e de acesso a serviços de saúde por parte das camadas historicamente invisíveis de países como o Brasil. No caso específico da saúde, sem dúvida, passa pelo aperfeiçoamento, fortalecimento e alcance do Sistema Único de Saúde (SUS) e não do seu escancarado estrangulamento, como temos visto nos últimos anos.
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