Atlas do ODS: quando os números não brigam com a realidade - Drº Marcelo Seráfico
Atlas do ODS: quando os números não brigam com a realidade
Drº Marcelo Seráfico - Prof. do Deptº Ciências Sociais da UFAM
A produção e classificação de dados quantitativos decorrem de motivações várias e estas, em geral, são mais importantes do que os resultados a que levaram. São mais importantes no sentido de que os próprios resultados derivam de objetivos definidos originalmente. Daí que as estatísticas nos digam, sim, algo importante sobre as realidades que pretendem representar quantitativamente, mas dizem ainda mais sobre o recorte da realidade que se fez para obter os números, classificá-los e interpretá-los.
É comum, por exemplo, o uso de dados quantitativos para fins exclusivos de rankeamento, isto é, de hierarquização. E, em geral, uma hierarquização com vistas a premiação, no melhor caso, e, no pior, à administração de recursos, em circunstâncias em que estes são disputados a ferro e fogo. Em situações assim, observa-se o que Jerry Muller[1] cunhou como sendo a “tirania da métrica”, uma jaula de ferro tecnocrática para aprisionar a realidade em números que tendem a, precisamente, escamotear aspectos relevantes da realidade representada. Digo isto para lembrar que nem sempre estatísticas operam no sentido de informar análises cujo fim é explicitar características substantivas, qualitativas, da realidade e, assim, subsidiar processos decisórios capazes de reduzir ou eliminar problemas.
Felizmente, há casos em que a estatística se combina a compromissos políticos vinculados ao combate de graves problemas sociais. Casos esses, portanto, em que a potência das quantidades se revela uma arma política fundamental para o combate à desigualdade. É assim que se pode ver, por exemplo, boa parte do trabalho sistemático realizado por entidades como o IBGE, o IPEA e o INPE, no Brasil; mas também por pesquisadores reunidos em torno de projetos como o Atlas da Exclusão Social no Brasil, coordenado por Márcio Pochmann, o Atlas da Desigualdade, do CityLab/MIT, ou o Relatório Mundial da Desigualdade, produzido anualmente pela Escola de Economia de Paris. É a essas iniciativas que se junta o Atlas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável do Amazonas, abrigado no Centro de Ciências do Ambiente da Universidade Federal do Amazonas e coordenado pelo prof. Dr. Henrique dos Santos Pereira, também coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia.
O Atlas ODS resulta de um esforço capitaneado pelo IPEA e desenvolvido por 75 instituições parceiras articuladas em torno do projeto ODS- Metas Nacionais dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A referência para a coleção e organização dos dados quantitativos são as 17 metas[2] de desenvolvimento sustentável do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Isso significa dizer que as estatísticas coligidas e organizadas no ODS são uma espécie de régua do desenvolvimento sustentável, um esforço de situar na linguagem dos números nosso lugar, tendo em conta critérios que vão da igualdade de gênero às condições do clima, da qualidade de acesso a bens como a água ao acesso à justiça e condições de paz. O Atlas serve, portanto, como uma base para diagnósticos sobre as condições de vida da sociedade amazonense, de modo geral, e, o que é ainda mais importante, de cada um de seus 62 municípios, em particular.
Como vivem as pessoas no Amazonas? Suas vidas estão mais próximas ou distantes daquilo que hoje se consideram condições adequadas de desenvolvimento sustentável? O que explica tais condições? Como elas podem ser superadas? Quais as resistências às medidas com vistas à superação? Como essas resistências se expressam? Que setores da sociedade se opõem à mudança? Quais os meios para enfrentá-los?
Essas são algumas das questões que emergem do diagnóstico ora apresentado e que por si sós já revelam a importância do ODS para a imaginação científica e a ação política.
Mas há ainda uma outra qualidade a ser destacada nessa iniciativa. Uma das características dos vários governos que vem conduzindo o Estado do Amazonas há cerca de 35 anos, é seu vasto e profundo desapreço por instituições dedicadas à produção de informação que sirva de referência para o planejamento de ações. O fim do CODEAMA e do ICOTI são exemplos conspícuos dessa veia de improviso e soberba que caracteriza nossos governantes, quando o assunto é a produção de conhecimento associado ao interesse público.
Enraizado numa instituição pública e coordenado por cientistas cujo compromisso com o combate às desigualdades se reitera no próprio Atlas, o ODS pode ser, caso queiram os assentados nas cadeiras do poder, um instrumento importante para a formulação e avaliação de políticas públicas; mas também uma arma pacífica para o combate ao improviso e desleixo em relação à vida dos que se fazem gente no Amazonas.
[1] MULLER, Jerry Z. The tiranny of metrics. New Jersey: Princeton University Press, 2018.
[2] São as seguintes as metas de desenvolvimento sustentável a serem atingidas até 2030: erradicação da pobreza, fome zero e agricultura sustentável, saúde e bem-estar, educação de qualidade, igualdade de gênero, água potável e saneamento, energia acessível e limpa, trabalho decente e crescimento econômico, indústria, inovação e infraestrutura, redução das desigualdades, cidades e comunidades sustentáveis, consumo e produção responsáveis, ação contra a mudança global do clima, vida na água, vida terrestre, paz, justiça e instituições eficazes, parcerias e meios de implementação.
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